No pain, no gain

Eline
7 min readMar 17, 2022

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Photo by Victor Freitas on Unsplash

Adeptos às academias de musculação e aos — um tanto questionáveis — galpões de crossfit estão familiarizados com a expressão “no pain, no gain”, que quer dizer, literalmente “sem dor, sem ganho”. Ao contrário das outras pessoas que chacoteiam dessa assertiva (a qual, convenhamos, é uma baita de uma frase de efeito), quem tem o mínimo de persistência com a musculação sabe que o ditado é uma dura verdade. É preciso ralar. Se você pegar leve ou ficar acomodado no mesmo treino por mais de um mês, você não verá resultados.

Veja bem, eu não pretendo de maneira alguma falar somente sobre musculação na publicação de hoje: se quiser me ouvir falar sobre o assunto, converse comigo pessoalmente. O fato é que a inspiração para escrever esta reflexão ocorreu após um incidente que eu tive mais cedo, enquanto fazia um exercício no qual preciso segurar bem firme numa barra e agachar com ela até que ela toque o chão, e depois subir. Fui imprudente: em vez de usar minhas luvas, com as quais eu consigo um pouco mais de estabilidade para segurar a barra, abandonei-as no chão e fui fazer tudo com as mãos nuas mesmo. O resultado foi um rasgo em um calo, e parte da minha pele deu tchau, querida! para mim. Passei álcool na hora e está ardendo até agora (não que isso tenha me impedido de finalizar minhas séries e terminar o treino do dia). Porém esse machucado me levou à associação com um trecho do livro Cartas de Um Diabo a seu Aprendiz, de C.S. Lewis, que eu havia lido depois do café da manhã. Para não inserir a carta inteira, fiz alguns recortes, sem prejudicar nem descontextualizá-la. Mas para quem quiser lê-la na íntegra, é a carta 12.

“Sabemos que ocasionamos uma mudança de rumo que já está levando o paciente* para bem longe da órbita do Inimigo**, mas você deve fazê-lo imaginar que todas as escolhas que causavam essa mudança de curso são revogáveis e insignificantes. Jamais permita que ele suspeite de que agora está, mesmo que lentamente, distanciando-se do Sol numa rota que o levará direto para a frieza e a escuridão do espaço mais distante (…)

Conquanto ele retenha externamente os hábitos de um cristão, você poderá fazê-lo imaginar que é uma pessoa que adotou novos amigos e divertimentos, mas cuja vida espiritual ainda é praticamente a mesma de seis semanas atrás. E, enquanto ele continuar pensando dessa maneira, não teremos de lutar com o arrependimento explícito de um pecado explícito que ele reconhece totalmente, e sim apenas com a sensação vaga, mas ainda assim um tanto incômoda, de que ele não tem se comportado muito bem ultimamente. É preciso manipular cuidadosamente essa vaga sensação incômoda. (…)

Se permitirmos a existência desse sentimento, sem que seja irresistível ou que se transforme num arrependimento genuíno, ele dará excelentes frutos. Ele fará com que o paciente fique mais relutante a pensar sobre o Inimigo. Todos os humanos, em quase todas as épocas, possuem essa relutância em algum grau; mas para pensar n’Ele é preciso enfrentar e intensificar a vaga nuvem de culpa semiconsciente, essa relutância fica dez vezes maior. Eles odeiam qualquer ideia que possa sugerir o Inimigo, assim como os homens que passam por dificuldades financeiras odeiam ver o extrato bancário. Nessa situação, o seu paciente não apenas irá negligenciar seus deveres religiosos como passará a gostar cada vez menos deles. (…)

À medida que a sensação incômoda e a relutância em enfrentá-la o afastam cada vez mais da verdadeira felicidade, e que o hábito faz com que seja cada vez mais difícil renunciar aos prazeres da vaidade, da alegria e da irreverência, que cada vez mais dão menos prazer (pois é isso o que o hábito faz na verdade), você perceberá que será necessário muito pouco, ou até mesmo nada, para atrair a sua atenção. Não será mais preciso um livro interessante (coisa que particularmente lhe agrada) para afastá-lo de suas preces, de seu trabalho ou de seu sono; a coluna de classificados do jornal de ontem será suficiente. Você pode fazê-lo desperdiçar seu tempo não apenas conversando com as pessoas de quem gosta, mas conversando com aqueles com quem ele não se importa sobre assuntos que o entediam. Você pode fazê-lo ficar sem fazer nada por longos períodos de tempo. Você pode fazê-lo ficar acordado à noite, não bebendo numa festa, mas apenas de olhos fixos na lareira apagada numa sala fria. Podemos impedir todas aquelas atividades saudáveis e saciáveis que desejamos que ele evite e não lhe dar nada em troca, de tal modo que ele finalmente dirá, assim como um de meus pacientes quando chegou aqui embaixo: ‘’Agora vejo que passei grande parte da minha vida sem fazer nem o que eu devia fazer nem aquilo de que eu gostava’.

(…) O assassinato não é mais eficaz que o jogo de cartas se o jogo de cartas já for suficiente. De fato, o caminho mais rápido para o Inferno é aquele que é gradual — um leve declive, um caminho suave, sem curvas abruptas, sem marcações e sem placas.”

Assim como a musculação, nossa vida espiritual requer esforço. Bem dizia o Apóstolo Paulo em Gálatas 5:17, nossa carne (isso é, nosso corpo e mente terrenos) luta contra o Espírito (nesse caso, o próprio Espírito de Deus, que habita em nós que somos convertidos por meio da obra de Cristo). Mesmo quem é crente “de carteirinha” não acorda todos os dias com aquele desejo ardente de orar, ler a Bíblia, meditar nela e louvar a Deus. Mas fazemos isso, também quando não temos vontade, em obediência, pois sabemos que isso trará resultados. Devemos estar conscientes de que a Palavra de Deus é, segundo a própria Bíblia, o nosso pão diário (Deuteronômio 8:3, João 6:51). E o que acontece quando você se priva de comida? Fica fraco. Murcha e vai definhando até que, eventualmente, morre de desnutrição ou de qualquer outra consequência da falta de nutrientes. O problema é que a “Palavra do Mundo” também é alimento, mas de péssima qualidade. É doce e agradável aos olhos, como quase tudo que leva alguém à perdição. Entretanto, é danoso, e vai entupindo sutilmente o que há de mais vital em uma pessoa, assim como comidas ricas em gordura hidrogenada e colesterol.

Para quem quer ter uma vida saudável, não basta só fazer exercícios e pegar pesado (há muitos que dizem que essa é a parte mais difícil, embora eu discorde), mas comer e dormir bem, beber bastante água, meditar, ir ao médico regularmente, etc. É tudo questão de escolhas e hábitos que culminam para o seu benefício ou para a sua decadência. Assim é a vida espiritual, assim é caminhar com Cristo. Quem é crente não vive em uma dimensão transcendente, acima de tudo e de todos, 100% santo — infelizmente há quem pense assim, tanto cristãos como não cristãos — . Nós, crentes, somos gente também, com nossas fraquezas e defeitos, mas entendemos que servir a Deus vai além de ter um estado de espírito perene que nos inspira todos os dias a buscá-Lo. É viver constantemente na luta contra a carne, a qual insiste na mentira de que mesmo sem a “dor” teremos o “ganho”, que mesmo sem nos arrependermos e confessarmos nossos pecados vai estar tudo certo; mesmo sem praticar as disciplinas espirituais continuaremos bons cristãos, e por aí vai.

Assim como exposto por Lewis, os hábitos nos moldam e alguns deles nem precisam ser grandiosos para gerar um grande impacto em nossas vidas. O pecado entrou no mundo como um fruto (quer algo mais banal e pequeno do que comida?) e hoje a humanidade continua sendo levada para “longe de Deus” por meio de um declive suave, que parece coisa boba, mas é sério.

Antes de terminar meu texto, quero chamar a atenção para duas coisas. A primeira é “disciplina espiritual”, que inclui a leitura da Bíblia e meditação nela, a oração, o jejum, a adoração, participação nos sacramentos (batismo e eucaristia), a comunhão com outros cristãos, a confissão de pecados, entre outras práticas como participar dos cultos públicos e praticar atos de serviço. Enfim, como a própria palavra diz, é preciso disciplina, e só então virá o hábito saudável de buscar agradar a Deus e estar na presença dEle. Não que isso torne as coisas mais fáceis, mas você sente a diferença quando deixa de praticar um desses itens da lista. Para seguirmos a Cristo é preciso nos machucarmos às vezes, seja ao abrir mão de uma atividade que consideramos prazerosa ou ao deixar hábitos antigos ou pessoas para trás. Mas logo você perceberá que os calos que adquiriu, por mais que machuquem a carne, irão compensar e trazer ganhos no final.

A segunda coisa é que não quero ser interpretada como alguém que defende a salvação por meio do esforço pessoal: longe de mim falar uma heresia dessas! Como cristã, creio que somos salvos da nossa morte espiritual unicamente por causa da graça de Deus Pai, por meio de Jesus Cristo, e que somos incomodados e convencidos dos nossos pecados pela ação do Espírito Santo em nós. Não temos participação na nossa salvação, entretanto, há um equilíbrio místico entre a soberania divina e a responsabilidade humana de obedecer a Deus.

Concluo, então, que essa letargia espiritual é motivo de alerta para todos os que se dizem cristãos. Esforcemo-nos a buscar a Deus, por mais dolorido que seja o processo de vez em quando, e saibamos que é com alegria que o Pai nos receberá quando fizermos a vontade dEle (a oração de Jesus em Mateus 6:39 é um bom exemplo disso). Continuemos esse exercício espiritual constante, afinal, é a ação do Espírito Santo em nós, por meio desses hábitos, que de fato nos fortalecerá até que nossos dias nessa terra se findem. E como já dizia outro ditado de academia (e desse aqui eu gosto, tenho que admitir): “nunca fica mais fácil, você apenas fica mais forte”.

*o paciente, no texto, é o rapaz sobre o qual o “diabo aprendiz” exerce influência, para tentar afastá-lo de Deus.

**o Inimigo, no caso, é o próprio Deus.

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