Memórias daquilo que não esvaeceu

um relato pessoal sobre minha trajetória no Instagram de 2011 a 2021

Eline
10 min readJan 13, 2021

Recentemente minha prima de dez anos de idade me enviou uma solicitação para me seguir no Instagram. Reflexiva sobre ela ser tão novinha e já ter um perfil na plataforma, dei-me conta de que aos meus dez anos de idade eu também entrava naquela rede social. Deparar-me com o fato de que uma criança nascida em 2010 tem acesso a uma plataforma como essa serviu-me de inspiração para escrever este ensaio. E qual oportunidade melhor para publicá-lo senão em uma data tão significativa como o dia 12 de janeiro de 2021?

Há exatos 10 anos a pequena Eline publicava sua primeira foto no Instagram. A imagem, disposta até hoje no meu perfil como reminiscência de meu pioneirismo nesta rede social, trata da estampa de um dos meus pijamas na época. Sem saber da existência da Regra dos Terços ou ter qualquer conhecimento formal de fotografia, enquadrei, próximo ao canto inferior direito, um delicado coração estampado e cercado por pequenas bolinhas em tons alternados de rosa claro e escuro. Foi a primeira de uma série de imagens que retratavam elementos do meu dia a dia e, sumariamente, posso dizer que minhas primeiras fotos consistiam em um tom experimental. Era uma descoberta e sobreposição exagerada dos filtros e molduras à disposição no App, ainda tão rudimentar naqueles tempos.

Quando criei minha conta no Instagram, eu não fazia ideia do tanto que ela mudaria e moldaria minha vida. Eu era apenas uma garotinha interessada por fotografia e que desejava compartilhar seu olhar amador do mundo ainda pueril que eu conhecia aos meus dez anos de idade. A internet era como uma extensão do parquinho de areia e, cada site, um brinquedo diferente encontrado. Se eu já me achava o máximo por usar o iPod touch da minha mãe, com o Instagram eu passei a sonhar em ser a próxima grande fotógrafa. Meu desejo era conectar-me com pessoas de outros países e mostrar para elas as imagens que eu capturava, naquela câmera de qualidade duvidosa, dos elementos básicos do meu cotidiano e da minha cidade. Minhas intenções eram boas, mas era aí onde se encontrava o perigo: nada é bom demais para ser verdade neste mundo decaído.

Um ano mais tarde o Instagram havia ficado tão popular que o Facebook o comprou. Minhas coleguinhas de turma passaram a aderir à moda de criar uma conta no App e eu pedia para “seguir de volta”. Rapidamente minha empolgação se esvaeceu ao perceber que elas não usavam a plataforma como eu. Estão distorcendo o propósito do App e transformando ele no Facebook!, pensei. Antes mesmo de ter qualquer contato com as teorias da comunicação, eu já me deparava com a indignação que Adorno e Horkheimer tiveram, na primeira metade do século XX, ao afirmarem que tudo na mídia e nas comunicações é isento da mera imparcialidade e está sob a égide das grandes empresas. Estas, por sua vez, fazem o que quiserem com seus produtos de mercado, e eu, no auge dos meus doze anos de idade, revoltava-me com a ideia de ver o Instagram ser transformado em mais um espaço de promoção do ego.

Porém foi exatamente isso o que ele se tornou: um espelho distorcido e ambiente de autopromoção, onde há uma competição acirrada por curtidas e comentários. Como qualquer criança ignorante a respeito de limites, eu alimentava meu feed como um monstro insaciável: eram cinco, seis fotos em um intervalo de poucas horas, e eu nunca me contentava com o retorno obtido. Minha intrínseca sede por aprovação começou a minar meu sonho ingênuo de obter reconhecimento pelas minhas imagens. Perguntava-me por que minhas colegas de escola tinham mais de 100 curtidas, ao passo que eu mal chegava a dez. Eu realmente me importava com isso como se fosse uma questão de vida ou morte (tanto que foi difícil, anos mais tarde, apagar todo o conteúdo que eu havia vomitado no meu perfil). Passei a comprar likes, seguidores, a investir em hashtags e em horas incessantes comentando em perfis de outras pessoas — desconhecidas, inclusive — se elas poderiam me seguir de volta. Minha meta era reivindicar os quinze minutos de fama proferidos por Andy Warhol — ou melhor, quinze segundos.

Emily em Paris é uma série leve e bobinha, mas que ajuda a refletir sobre o uso exagerado do Instagram.

Parece ridículo e absurdamente terrível chegar ao ponto de mendigar por atenção na internet. Era mesmo, eu sei, mas em minha percepção de pré-adolescente, aquela era minha chance de alcançar o padrão desejável. Eu era um projeto de Sísifo, castigada a empurrar a pedra do meu ego até o topo da montanha, só para vê-la rolar de volta à base e ter de recomeçar o processo novamente.

No início da década de 1990, o autor norte-americano David Foster Wallace publicou um artigo, em uma revista de crítica de ficção contemporânea, a respeito da televisão e de como ela repete o teor apelativo da propaganda para vender. Na dissertação, é claro, o escritor pauta seu argumento em torno do consumo excessivo de televisão pela população dos Estados Unidos. Logo no início ele apresenta, como amálgama dos espectadores solitários, um “tipo” chamado Joe Briefcase. “(A televisão) parece ser uma dádiva de Deus para uma subespécie humana que ama assistir às pessoas mas odeia ser assistida. (…) Podemos ver as outras pessoas, mas elas não podem nos ver. Podemos relaxar, inobserváveis, enquanto cobiçamos.”

Durante minha adolescência, tornei-me um Joe Briefcase da geração Z, observando a vida que as pessoas compartilhavam e cobiçando, mesmo que inconscientemente, a aparência, as viagens, as roupas, as amizades e a felicidade que elas exibiam. Eu era obcecada por observar as pessoas de longe, pela telinha do meu celular, mas ficava embaraçada ao me deparar com qualquer uma delas na escola ou na rua. Eu contava cada uma das minhas curtidas, mas na “vida real” não suportava ser o centro das atenções. Eis o paradoxo gerado em mim.

Encerrar minha conta no Instagram seria o equivalente a amputar um dedo: um doloroso ato de automutilação.

Aos poucos, seja por amadurecimento ou por vergonha, abandonei essa prática infantil de disputar por popularidade em um mundo onde eu era só mais um grão de areia. Passei a adotar um olhar mais crítico e cheguei à conclusão de que minha própria existência no Instagram consistia em uma relação de amor e ódio. Se por um lado eu passava horas a fio explorando as novas postagens no meu feed, por outro, minha vontade era de me libertar completamente daquele círculo vicioso e deletar minha conta. Mas àquele ponto, isso já havia se tornado praticamente impossível. O Instagram havia se tornado parte de mim. De fato, ele passou a ser meu álbum de fotos, minha fonte de notícias locais e internacionais, meu entretenimento, meu trabalho, meu calendário de aniversários e datas comemorativas, minha agenda de contatos, minha caixinha de correio, meu método mais eficaz de descobrir estabelecimentos aonde comer, passear e comprar. Encerrar minha conta no Instagram seria o equivalente a amputar um dedo: um doloroso ato de automutilação.

Eu estava cada vez mais ansiosa, deprimida, e minha atenção parecia focada em um milhão de coisas e em nada ao mesmo tempo. É claro que a culpa não era unicamente do Instagram: durante minha adolescência passei quase concomitantemente pelas fases do Twitter, Facebook, Tumblr e Snapchat. Como Tristan Harris, fundador do Center for Humane Technology (Centro para Tecnologia Humanizada) afirmou em 2017, essas grandes empresas estão em uma corrida pela nossa atenção. Eu não admitia, mas a internet havia se tornado um ídolo que tinha minha total devoção. Durante minha adolescência, era impossível eu sair de casa sem o celular. Para onde eu ia, você pode ter certeza que eu buscaria a rede Wi-Fi mais próxima e ficaria hipnotizada rolando um feed infinito em vez de aproveitar a companhia de pessoas finitas. E se eu aproveitasse, pode ter certeza que eu deixaria registrado para publicar mais tarde. De migalha em migalha, as postagens frívolas e superficiais que eu via formavam o pão bolorento do qual eu me alimentava incessantemente.

Parecia que nenhuma das minhas experiências e vitórias pertenciam a mim, e sim a um coletivo anônimo.

Creio que a última grande atualização do Instagram relevante foi o acréscimo dos stories, e foi ela que quase me prendeu de vez ao “Labirinto de Zuckerberg”. Essa pequena revolução foi grande o suficiente para causar um rebuliço e, posteriormente, derribar o Snapchat aqui no Brasil. A partir daí, eu passei a compartilhar minha vida ao máximo em postagens que permaneceriam por um tempo mínimo. Mesmo sem ter nada de especial acontecendo, eu desejava visceralmente expor minuto a minuto dos meus dias. Até o início do ano passado, era quase imprescindível para mim publicar com quem eu estava, o que eu estava lendo ou assistindo, aonde e o que eu estava comendo, ou postar capturas de tela de conversas engraçadas trocadas com amigos. Minhas conquistas e momentos mais importantes, alguns bem pessoais, estavam todos expostos para que meus seguidores vissem e (quiçá) invejassem: viagens, família, aprovação na UnB, diversão com amigos, lanches em cafés chiques, pensamentos existenciais. Uma vez que tudo havia sido registrado e visualizado, parecia que nenhuma das minhas experiências e vitórias pertenciam a mim, e sim a um coletivo anônimo.

Por fim, veio a pandemia da Covid-19. Mais do que nunca, parecia essencial estar e postar nas redes sociais para se conectar com os outros. Eu estava excitada com a ideia de compartilhar cada fragmento dos meus monótonos dias de quarentena, além de acompanhar como cada uma das pessoas estava lidando com a nova situação. Foi assim nos primeiros meses de confinamento: eu não passava dois minutos sem verificar as atualizações dos perfis de jornais e de quem eu seguia. Se acabassem as novidades, eu pulava para a aba “explorar” e passava horas rindo de memes que disfarçavam a minha crescente solidão. Aos poucos, aquela superexposição começou a me cansar de vez. Já que tudo em minha volta era pela internet — aulas da faculdade, reuniões do trabalho, encontros com amigos, cultos da igreja, escola bíblica e clubes do livro — , deletar o app do Instagram não parecia uma medida tão drástica.

O Dilema das Redes; Netflix, 2020

Eu já havia deletado provisoriamente o app algumas vezes, em momentos anteriores, como no período final do meu terceiro ano do Ensino Médio e durante as férias de verão de 2018. Entretanto, em 2020 a experiência foi ainda mais radical e necessária. Creio que passei três meses sem acessar minha conta, e foi como um longo suspiro após uma maratona. Durante meu tempo “fora”, assisti a uma série bobinha, um filme e a um documentário que me relembraram de como as redes sociais são nada mais do que a construção de uma realidade paralela e, muitas vezes, idealizadas (as produções eram, respectivamente, Emily em Paris, Oitava Série e O Dilema das Redes). Minha relação com o Instagram mudou ao retornar, lá para meados de julho, e me esforcei para que essa mudança fosse perene. Deixei no mudo várias das pessoas a quem eu seguia, tanto para publicações quanto para stories; deixei de seguir todos os perfis de notícias que estavam perturbando minha mente em momentos de relaxamento; passei a visualizar os stories somente de parentes e amigos próximos. Também deletei mais algumas fotos, porque eu queria focar meu perfil em quem eu sou, e não em quem aparento ser. Minha vida não mudou drasticamente. Meu tempo não passou a render mais desde que diminuí meu tempo de tela. Não me tornei uma estoica apática que alcançou a ataraxia ao deletar um aplicativo de celular por algum tempo. Entretanto, passei a degustar a plataforma como uma taça de vinho (não que eu seja especialista em vinhos): agradável até certo ponto, destrutivo em grandes medidas; jamais essencial para minha sobrevivência.

Por coincidência, enquanto eu redigia este texto tive a oportunidade de ver e falar com minha prima de dez anos, a quem me referi no primeiro parágrafo do ensaio. Ela está uma mocinha linda, muito melhor do que eu naquela idade. Peço a Deus para que ela não caia na mesma armadilha na qual caí há dez anos, ou, pelo menos, que ela não passe por isso tão cedo.

Nesta segunda década de Instagram que inicia para mim hoje, deixo esta singela reflexão registrada aqui. Aos 20 anos de idade, sei que ainda sou nova e ainda terei que me familiarizar com plataformas novas no futuro (apesar de que já me sinto macaco velho para redes como o TikTok). Talvez eu pudesse ter escrito este texto de outra maneira, caso eu tivesse tido mais inspiração, dados estatísticos ou embasamento de autores e filósofos que comentem a compulsão por navegar a rede à qual me referi. Não faço nenhum apelo para que você, leitor, delete todos os seus perfis e junte-se a mim em um mundo anti-Revolução 4.0. Apenas peço para que você se lembre de que um dia você vai morrer e tudo ficará para trás, e isso independe do número de seguidores, curtidas ou comentários que você venha alcançar.

Deixo, para concluir, uma meditação em uma de minhas passagens favoritas da Bíblia Sagrada:

Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre.
Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo.
O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos.
Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.
Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir;
os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.
O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol.
Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Já foi nos séculos que foram antes de nós.
Já não há lembrança das coisas que precederam; e das coisas posteriores também não haverá memória entre os que hão de vir depois delas.

Eclesiastes 1:4–11

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